Dia de chuva: Okinawa parte 3

Amo dias de chuva e andar na chuva, mas os dias de chuva no Japão, minha nossa, são espetaculares. Como senti falta. Pés molhados e frio não são nada. Andar quilômetros e mais quilômetros. Uma obra de arte a cada virada de cabeça. No Brasil existe uma ideia, vinda não sei daonde, de que o Shorin-ryu é um Karate “esquisito” e “superado”, “sem força” até. Eu lhes garanto, venha com esse pensamento para Okinawa e vai ter uma grande surpresa. Ô vai! E não do tipo agradável. O que entrego nesses relatos é um Japão e uma Okinawa que não serão vistos pelo turista comum. Durante anos trabalhei com a população de rua do Rio, os excluídos da festa, os invisíveis.

*

Não se deixem enganar pelo meu último texto. No Japão existe a preocupação com o outro sim, mas o individualismo ditado pela lógica do lucro do capital e da gentrificação das cidades está em seu máximo. O que deixa maravilhados os estrangeiros que vem pra cá me deixa horrorizado até o último fio de cabelo.

-Olá, posso falar com você?

Uma frase aparentemente educada, não é? Não! É o indicador de um problema enorme e profundo. Individualismo. Desumanização. Solidão. Depressão. Dor. Não se pede para falar com os outros, simplesmente se fala, interação humana básica. Sem isso ficamos doentes. Somos animais sociais. E nem todo discurso estupidamente individualista do mundo irá mudar nossa biologia. Ou somos comunitários ou adoecemos e definhamos sozinhos acreditando na maior mentira dos últimos seculos: De que é cada um por si no mundo. Não, não é.

Estou eu numa praça treinando. Crianças chegam para brincar, jogar basebal. Eu paro e sento. Um senhor com uma cerveja na mão se aproxima, as crianças devagar e em bloco começam a se a afastar e depois a quase correr. O homem fala alguma coisa pra elas. A reação comum seria ficar atento, fazer cara de mau e se preparar para quebrar a cara do tarado, certo? Errado. Eu lhe dou um sorriso.

-Olá, posso falar com você?

-Claro. (digo eu)

Yoshinari-san é um homem nos seus 50 e poucos. Sozinho. Brincava naquela praça quando criança. Okinawense da vila de Tomari. Tem Karate no sangue. Estava com lágrimas nos olhos ao ver as crianças brincando no parque. Saudade. Solidão. Me disse que não tem filhos. Não tem namorada e nem namorado. Ele gostaria, para ele tanto faz. Me fala das casas de caridade ao redor. Me fala sobre Okinawa. Sobre o Rio de Janeiro. Ele só quer conversar. – Me sinto muito sozinho – diversas vezes a frase é jogada entre um assunto e outro. Pede pra ver meu Karate. Falo por bastante tempo até que ele se sinta um pouco melhor, na medida do possível. Me despeço.

-Gostei muito de você!

No japão o silêncio nas ruas é enorme. Burburinho de conversa só nas ruas principais dos grandes centros e mesmo assim mais pelos turistas do que pelos japoneses. Abordar os outros para conversar é falta de educação, a não ser por um eventual – frio né! – ou – calor né!-. Você pode fazer até uma japonesa pular e gritar de susto se tentar (já vi acontecer). Se fizer uma viagem sozinho como eu pode ficar dias sem falar com ninguém se quiser. Não se assuste se de repente estiver falando sozinho só para ouvir sua própria voz. É um mecanismo natural. Então da próxima vez que vir um morador de rua gritando e falando sozinho, pense porque será que ele está assim, é maluco? Ou só não conseguiu contato humano nenhum e está criando o seu próprio?

Vejo Yoshinari-san mais uma vez, andando nas ruas, entrando nas lojas só pra tentar falar com alguém, consegue trocar quatro palavras com duas senhoras. Dura pouco. Elas se afastam. Segue ele pela rua, cabeça baixa, olhos vermelhos.

-Gostei de você muito. See you. Bye bye.

Bye bye Yoshinari-san. Bye bye.

Na próxima o treino (finalmente!)

Continua…

1 opinião sobre “Dia de chuva: Okinawa parte 3”

  1. Este é seu segundo texto que tenho o prazer de ler. Digo isso, pois seus relatos são de quem tem olhos sensíveis para os detalhes.

    Obrigado, muito obrigado.

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