OKINAWA E PATRIARCADO

Para entendermos o Karate de Okinawa precisamos primeiro conhecer um pouco mais sobre a história e a cultura dos povos desse arquepélago, os criadores do Karate. E, para entendermos essa cultura, precisamos analisar a questão de gênero, uma vez que sua construção em relação às mulheres se deu de uma forma bem diferente da nossa aqui no ocidente e mesmo da ilha principal do Japão: no caso, Okinawa possuiu um sistema bem diferente do sistema patriarcal.

Mas antes, para entendermos o que chamamos de patriarcado hoje e como ele age em relação às mulheres e à sociedade como um todo, devemos primeiro fazer uma pequena análise histórica de como esse sistema surgiu, se fortaleceu e se perpetuou pelo mundo. Tal análise é possível devido à crescente produção de estudos históricos, antropológicos e políticos sobre as relações de gênero entre os diversos povos e civilizações que existiram e ainda existem ao redor do mundo. Já se foi o tempo em que acreditava-se que nas primeiras eras da existência humana o que imperava era um sistema primitivo de patriarcado, no qual as mulheres, frageis e desamparadas, eram totalmente submetidas à ordem dos homens, muito fortes e astutos, tal como vemos simbolizado nos desenhos com homens das cavernas puxando suas mulheres pelos cabelos. Uma real pesquisa sobre tais formas antigas de organização social nos mostra o oposto disso: não só as mulheres não eram submissas aos homens como estas tinham um papel central na vida e na orgaização das comunidades primitivas de assentamentos.

O período Neolótico (7000 a.C. a 2500 a.C.), quando se iniciava o processo de sedentarização das populações humanas em diversas regiões do planeta, surgindo com isso as primeira formas de agricultura e domesticação de animais, foi o período onde mais se observou essa forma de organização social baseada nas mulheres que, posteriormente, foi denominada matriarcado. Embora alguns pesquisadores e estudiosos possam discordar do termo, este será aqui adotado. Ao contrário do que costuma-se supor, o termo matriarcado não significa uma sociedade onde, ao contrário do patriarcado, as mulheres dominam e oprimem os homens, e sim uma sociedade onde a opressão em si não era permitida em qualquer nível. Nela, as sociedades – que na época eram formadas por clãs e tribos – concediam respeitosamente às mulheres, principalmente às mulheres-mães, o controle de grande parte das atividades da comunidade por considerá-las as mais capazes de manterem a comunidade viva e próspera, uma vez que as mães, além de serem aquelas que geravam a vida, eram aquelas responsáveis por nutrirem e cuidarem daqueles que nasciam. Logo, quem melhor do que elas para nutrirem, cuidarem e manterem a vida da própria comunidade? É claro que não podemos generalizar isso para todas as comunidades do mundo, uma vez que cada povo possuia diferenças em relação às sua geografias, histórias e costumes, mas em todos eles os sistemas baseados na mulher-mãe eram, e ainda são, sistemas de valorização da vida e de respeito à natureza e a todos os seres vivos.

O que podemos chamar de a primeira economia, a economia da dádiva (gift economy), era uma economia realizada e administrada principalmente pelas mulheres-mães, a qual se baseava na distribuição de tudo o que era produzido e adquirido para todos da comunidade segundo a necessidade de cada um, e não na acumulação desse produto nas mãos de apenas alguns abastados, tal como vemos hoje nas grandes civilizações. No entanto, nessa época, enquanto as mulheres eram principalmente responsáveis pelo cultivo e colheita, pelo cuidado das crianças, pelo tratamento medicinal e pela organização do território, os homens mais jovens e fortes eram os principais responsáveis pela caça e pela defesa do território contra perigos externos. Logo, a lógica usada por esses homens era a de violência e hierarquia, que eram necessárias a essas tarefas. Com o advento de novas ferramentas e técnicas para tais fins e do desenvolvimento de uma inteligência analítica que tinha por objetivo a competição e a conquista principalmente por meio da violência, em certo momento alguns homens, dentre eles líderes espirituais, anciões sábios e caçadores, cobiçaram os produtos produzidos pela comunidade como um todo e viram que poderiam, assim como faziam entre si, dominar e gerir a própria comunidade para proveito próprio por meio da sua lógica de conquista pela violência, criando assim seu próprio sistema de economia: a economia da conquista e da acumulação. Foi esse processo que deu origem aos sistemas masculinos baseados em tal lógica, tais como impérios, monarquias, ditaduras, estados, os quais aos poucos foram dominando outros povos (grande parte matriarcais) e forçando-os a seguirem seu modelo ou exterminando-os quando não aceitavam seguí-lo.

Engana-se quem pensa que as sociedades de clãs, uma vez se assentando e sedentarizando, naturalmente se desenvolveram em sociedades de acumulação, guerras, disputas, genocídios e dominação de uns poucos sobre outros muitos, ou que essa mudança de paradigmas constitui uma etapa indispensável na “evolução da humanidade”. Nada poderia ter sido menos natural do que esse desenvolvimento. Para conseguirem inverter totalmente a lógica das sociedades igualitárias e matriarcais, esses poucos homens usurpadores tiveram que atacar o centro destas: as mulheres, principalmente as mulheres-mães. Tais ataques contra as mulheres foram vistos em diversos momentos na história – ocorrendo até os dias de hoje – e em todo o mundo, tais como a perseguição das mulheres pelos grandes impérios da antiguidade, como na queda da Civilização Minóica, a Caça às Bruxas na Europa, a dominação de Satsuma em Okinawa, só para citar algumas. Claro que houveram diferenças regionais muito marcantes sobre como os sistemas patriarcais foram atacando e destruíndo os sistemas matriarcais. Analisaremos rapidamente agora o caso das Ilhas de Okinawa, ou dos povos Ryukyuanos.

Alguns estudiosos demonstram e defendem que no arquepélago de Okinawa, antes das invasões colonialistas japonesas, chinesas e norte-americanas, vivia uma sociedade matriarcal, onde as mulheres tinham um papel central na vida das comunidades Ryukyuanas. Baseio-me aqui em diversos artigos acadêmicos escritos sobre o sistema de crença dos povos de Okinawa principalmente desde o século 15, pois infelizmente carecemos de relatos anteriores a esse período devido à grande persegição e destruição das ilhas, dos povos e dos registros históricos de Okinawa.

Em Okinawa, as crenças eram baseadas no animismo e no respeito aos ancestrais, nos quais um dos mais fundamentais princípios era a crença em Onarigami (Onari = mulher, Kami = divindade), ou seja, na ideia de que todo poder espiritual emana das mulheres. Por isso, as mulheres eram detentoras de grande poder social, espiritual e político. Cada região era responsável pelo seu próprio sistema de crenças e práticas, sendo o Onarigami um aspecto comum a elas. Devido a isso, no século 15 o rei Shõ Shin, ao estabelecer um sistema oficial de religião sob o antigo Reino de Ryukyu, o fez em cima dessa cultura. Embora fosse um reino e, como todo reino, seguisse de certa forma uma linhagem patrilineal e mantivesse relações políticas com outros impérios patriarcais, como Japão e China, ainda assim o papel das mulheres era importante mesmo dentro do estado e mais ainda dentro de cada comunidade.

Por exemplo, ressaltamos o papel das Sacerdotizas, que eram aquelas responsáveis por conceder poder espiritual ao reino e à população, mais até do que o próprio rei. Haviam sacerdotizas do reino e sacerdotizas chefes de cada região de Okinawa, as Nũru, mulheres essas que faziam a ligação entre a corte e os povos. Juntas as Nũru e as sacerdotizas tinham o objetivo de garantir a união dos povos e cuidavam de boa parte da economia do reino. Além delas, existiam também as Yutas, mulheres com grande poder espiritual chamadas pelas famílias para resolver problemas que assolavam aos familiares, seja espiritual, seja de saúde, seja de trabalho. Dentro das próprias famílias, as mulheres – avós, mães, filhas, irmãs, primas – possuiam um status importante de gerir e garantir a vida familiar, tendo o poder de garantir a longevidade dos membros da família e também da comunidade. Mulheres quado casavam não precisavam abandonar seus nomes de solteira e pertencer apenas à família do marido, como era muito comum naquela época em diversos lugares. As tarefas domésticas eram muito mais flexíveis em relação aos gêneros e as irmãs eram sempre respeitadas pelos irmãos como Onarigamis. Eram as mulheres consideradas mais sábias e poderosas espiritualmente que tomavam muitas das decisões da comunidade. Em diversas regiões, apenas as mulheres podiam entrar em locais considerados sagrados.

Foi no século 16 (na mesma época do ápice da caça às bruxas na Europa), na dominação do Reino de Ryukyu pelo clã de Satsuma, que o papel feminino no reino começou a ser desmantelado. Considerando os ryukyuanos como culturalmente inferiores, Satsuma invadiu e dominou o reino de Ryukyu com o apoio dos gorvernantes japoneses da Era Edo para transformá-lo em um sistema governamental que se adequasse mais aos modelos chinês e japonês. Para isso, uma das principais estratégias de dominação foi aos poucos retirar o poder que as mulheres exerciam e impor-lhes uma forma patriarcal de governo. Dentre as medidas tomadas para isso, podemos citar a proibição das sacerdotizas em fazer a ligação da corte com os vilarejos, sendo agora realizadas por oficiais homens do estado; a proibição das sacerdotizas de receberem presentes do rei (que era uma forma de simbolizar a importância destas) dentro da corte, devendo esses agora serem enviados por terceiros a suas casas nas comunidades; imposição do Confucionismo como religião oficial, o qual prega uma visão de subordinação das mulheres aos homens; criação de novos rituais oficiais que impediam que mulheres pudessem participar dos papeis principais; tornar o rei a figura principal e todos os rituais do estado e torná-lo o link central com o poder espiritual, não mais as sacerdotizas; diminuição ou retirada do papel das sacerdotizas e Nũru na economia da corte, agora representado por oficiais homens que iam recolher os impostos e precisavam ser entretidos por música e dança pelos camponeses (principalmente por mulheres jovens camponesas); e, talvez o pior de todos, a proibição formal das Yutas.

No entanto, o povo ryukyuano não aceitou as novas imposições. O Confucionismo não se tornou popular e estes ainda praticavam suas crenças tradicionais. Além disso, as Yutas foram defendidas e continuaram existindo apesar da proibição. No entanto, a perseguição às mulheres continuou conforme o poder patriarcal foi se intensificando no estado Ryukyuano. No momento em que este deixou de ser um reino e se tornou Prefeitura de Okinawa no século 19, na Era Meiji, a propriedade das terras em Okinawa passou a ser apenas permitida às famílias patrilineares, tirando-as de vez das sacerdotizas regionais e das famílias que não seguissem um modelo patrilinear.

Então veio a Segunda Guerra Mundial e, com ela, a disputa norte-americana pela região de Okinawa. A Batalha de Okinawa, como ficou conhecida, não apenas assassinou mais de um terço da população okinawana e fez com que muitos mais tivessem que fugir das ilhas, mas também destruiu cerca de 90% da região, o que incluia locais sagrados e de moradia de todos os povos, e levou à colonização cultural e religiosa por missionários budistas e cristãos (crenças essas que também pregavam uma visão sexista de subordinação das mulheres aos homens) daqueles que haviam sobrevivido e permanecido no local. A ocupação norte-americana continuou, assim, aquilo que Satsuma havia começado em sua campanha de difamação e subjugação da cultura ryukyuana. Isso também abriu caminho para a violência cotidiana contra as mulheres, provocada principalmente por japoneses e norte-americanos, tais como agressões, estupros, humilhações públicas e o próprio tráfico de mulheres, com os quais lidamos até hoje em todos os lugares do mundo onde imperam os sistemas patriarcais. Por essa razão muito do karate de Okinawa foi desenvolvido pensando na auto-defesa feminina, tal como será descrito no próximo texto.

No entanto, embora um pouco diferente do que era antes, o povo de Okinawa ainda mantém uma cultura de respeito aos ancestrais e principalmente às mulheres que, embora muito abalada, ainda resiste. Desde os anos 80 tomou ainda mais força a busca pela reconstrução da identidade das mulheres okinawanas e pelo resgate da história de seus povos. São inclusive as mulheres as mais ativas na luta contra a violência patriarcal e militar em suas comunidades.

No Karate, os Dojos pelo mundo, por terem adotado uma postura militarizada, competitiva e dominadora, muito diferente da adotada pelos Dojos em Okinawa (como veremos no próximo texto), ainda perpetuem a subjugação de mulheres. Por esse motivo muitos dos que lerem esse texto estarão indignados e com raiva do que foi dito. No entanto, o Meibukan Tenchi Dojo se compromete com a divulgação da realidade do local onde surgiu o Karate e com o respeito a sua cultura, entendendo que apenas assim podemos aprender verdadeiramente o sentido dos ensinamentos que são passados no Karate tradicional de Okinawa.

Texto: Luiza Dalcin. Mestra em Saúde da Mulher e Instrutura do Tenchi Dojo.

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